sexta-feira, setembro 23

À borda d'água

À borda d'água uma figura.
Estatura pouco elevada.
Cabelo curto, olhos verdes.
Os braços caídos até ao chão.
Embrulhado num casaco,
com as golas nas orelhas,
um rapaz de pouca idade.

Subiu a maré, mergulhou.
Não batalhou por indiferença.
Levado por tristeza, chorou.
Não susteve a respiração.
Deixou a água entrar
por não querer sofrer mais.
Sentiu o sabor do sal,
sem saber se do mar,
sem saber se das lágrimas.


Então viu.
A vida em menos dum ápice.
Viu o seu brinquedo favorito
partido em cacos no chão.
O pai. A mãe. Sorrisos.
A professora primária.
Dona Matilde de Gaia.
Quase em idade de reforma.
Não lhe viu o rosto,
mas reconheceu pela saia
longa, azul ciano.
Castigara-o um dia por engano.
Não guardara rancor por isso.
Viu a primeira paixão.
A primeira, a segunda, a terceira.
Todas as palavras não ditas.
Todas as palavras malditas,
no final de cada relação.
Os amigos de sempre.
Aquela viagem a Madrid.
As conversas no autocarro,
os comentários do “Castanha”.
(Porque teria ele essa alcunha?)
A evidente troca de olhares
entre a Vera e o David.
A Sofia sentada a seu lado.
Saíra de casa, uma vez,
sem que dessem por isso,
para se encontrarem os dois.
Marcaram no final do passadiço,
sobre as rochas da praia.
Marcaram o seu beijo
sob testemunho das estrelas
e consentimento da Lua.
Dois corpos num só
enquanto a noite durou.
O dia trouxe luz.
A luz intensificou.
Tornou-se insuportável.
De inicio o horizonte,
depois o mar, depois as rochas.
Ofuscava-se o mundo.
O corpo de Sofia, desvanecido.
Perdeu o adeus desse encontro.


Viu-se perder, cego!


Viu voltar as memórias.
Amarelada em fundo branco,
agora por uma linha desenhada
suspensa, a luz incandescente.
Retomou a noção de espaço.
Deitado, inerte, em seu quarto.
Viu, em imagens fragmentadas,
o caminho que a casa o levara.
Misturados de forma incoerente,
levaram-no de volta.
Viu subir a maré, mergulhou,
sem lembrar porquê.
Nesta memória, parou.
Confuso, sentiu-se empurrado.
Não viu em si motivação.
Procurou respostas verdadeiras.
Retomou o que havia lembrado.


Então viu.
O pai. A mãe. Sorrisos.
A professora primária.
Dona Matilde de Gaia.
Óculos no magro rosto,
lábios de vermelho pintados.
Castigara-o por sucessivos atrasos.
A Vera, o David, o Rui “Castanha”.
O encontro com Sofia.
Todos os detalhes dessa noite.
O nascer do dia. O clarão.
O horizonte, o mar, as rochas,
sumirem-se de novo.
Fragmentos da praia, difusos.
Procurou o que faltaria.
Enquanto mergulhava no mar,
a última imagem lhe chegou.
Olhara para trás com esforço.
À borda d'água uma figura.
Estatura pouco elevada.
Os braços caídos até ao chão.
Embrulhado num casaco,
um rapaz de pouca idade
imaginava o seu fim.


Tiago Martins, 17 de Setembro de 2005.

1 Comments:

Blogger ]JuLiE[ said...

"Sentiu o sabor do sal,
sem saber se do mar,
sem saber se das lágrimas.
...
Não lhe viu o rosto,
mas reconheceu pela saia
longa, azul ciano.
Castigara-o um dia por engano.
Não guardara rancor por isso.
...
Marcaram o seu beijo
sob testemunho das estrelas
e consentimento da Lua."

Vou apenas dizer k adorei a forma como começaste e acabaste, os detalhes são merecedores do espaço...
E o nome merecedor do tempo perdido a ler...
Akilo k senti ao ler, vou guardar para outro café! :)
Nao tenhas medo ou receio, se é curto ou comprido,... eu n me importo e cm te disse há pouco...
Kem se importar k se keixe... a estética n é td na vida! :)

6:09 da tarde  

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